Maricá/RJ,

Um Novo Modo de Ler

                       Muniz Sodré

Eis um fato que hoje pouco se comenta (ou que, na verdade, pouco se sabe): o livro não tinha maior importância na aurora do sistema de pensamento que veio a se chamar de Ocidente. Isto foi frisado por Heidegger. Pensar, para o antigo grego, era atividade pública e oral.

Em nossa modernidade, entretanto, a forma codex (escrita unidirecional, páginas organizadas em cadernos e costuradas), depois chamada livro, impôs-se aos usos e aos espíritos como locus do conhecimento centrado, da leitura que constitui pastoralmente a cidadania, da produção do sentido e do real medidos pela escala do humanismo. O livro é a melhor das metáforas para a educação, para o conhecimento que, no passado fordista, garantiu a ascensão social dos estratos mais pobres e sem o qual não se pode hoje conceber dinâmica de crescimento econômico. Tal é horizonte em que o livro foi olhado pelos pobres como tábua de salvação.

Por isso, guardar o livro e estimular a sua circulação por políticas adequadas implicam preservar o fio condutor das idéias que garantem a transmissão intergeracional do sentido de povo e de Nação.

Essa transmissão faz parte do segredo da cultura.

Mas estamos inclinados a achar que o futuro humano dos modos de transmissão do saber depende não tanto da mera natureza técnica do dispositivo (bits ou papel), e sim da conquista de uma forma suscetível de nos oferecer abrigo contra os perigos de morte do sentido. Pensamos que, para isso, seria necessário termos como ponto de partida o fato que a leitura é, hoje, uma prática heterogênea ou plural.

Ou seja, há novos modos de ler.

De fato, o impresso (livro, revista, jornal, etc.) não é a única coisa que se lê. Basta atentarmos para todas as acepções da palavra latina interpretari, para nos darmos conta de que ela significa também ‘ler’ — e numa maior amplitude do que legere, que se consolidou com o sentido de recolher e juntar as letras dentro das regras da razoabilidade (o logos moderno) unidimensional e linear. Na verdade, nós estamos lendo quando interpretamos um anúncio publicitário, um outdoor, um videoclipe. E certamente lemos um hipertexto — em que fazemos necessariamente conexões com uma textualidade diversa — de maneira diferente de um livro.

Há, portanto, uma diversidade de escritas, assim como uma diversidade de leituras.

Essa diversidade é acelerada pelas tecnologias do virtual, essas mesmas que conformam uma nova ambiência comunicativa e formas novíssimas de existência. Trata-se do que vimos chamando de bios midiático, ou seja, uma nova forma de vida que implica indistinção entre tela e realidade — realidade ‘tradicional’, bem entendido, uma vez que a realidade de hoje já se constitui dentro da integralidade do espetáculo ou da imagem a que aspira o virtual.

Por conseguinte, as novas formas de escrita e de leitura circulam no mesmo contexto sócio-cultural dos modelos industriais que transformam a vida em sensação ou em entretenimento. É o contexto de uma economia poderosa voltada para a produção e consumo de filmes, programas televisivos, música popular, parques temáticos, jogos eletrônicos.

Mas o importante a se notar aqui é que a diversidade de escritas e leituras implica o descentramento cultural do livro, isto é, a perda do monopólio clássico de manutenção da memória e transmissão da cultura. Este é um movimento irreversível, principalmente quando se considera que é a juventude o sujeito coletivo da apropriação dessas novas escritas e leituras.

Em princípio, deveríamos nos rejubilar com essa verdadeira mutação cultural. Entretanto, somos levados a ponderar sobre a ausência de mediações ético-políticas para a relação que se estabelece entre esses jovens e as grandes organizações industriais, responsáveis pela produção e venda dos textos (letrados e imagísticos) que suscitam a diversidade de leituras. A única lógica aí predominante é a do mercado, e não da escola, esta forma de transmissão da cultura, baseada no livro, que vem criando os quadros das profissões e da cidadania desde o começo da modernidade européia.

Ao Estado impõe-se certamente a obrigação de formular políticas públicas de cultura capazes de construir as mediações requeridas pela mutação tecnológica e cultural em andamento. O Ministério da Cultura e o Ministério da Educação são os braços do Estado que já movimentam ativamente neste sentido.

Muniz Sodré é doutor em Comunicação Social, pesquisador, autor de livros, professor titular da UFRJ.

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